A chapa Lula e Alckmin é o símbolo perfeito da disputa que se travará nas eleições de 2022: o Brasil redemocratizado, da Constituição cidadã de 1988, contra o Brasil dos porões, da ditadura militar, do silenciamento de toda crítica, inclusive de qualquer mecanismo de combate à corrupção.

Muitas críticas de parte a parte devem aparecer no debate, como argumentos contra a aliança, mas críticas são a tônica do processo político, da busca de distinção perante o leitor. Esta não é a questão. Importa se as diferenças são inconciliáveis.

Por isso, Alckmin é um bom vice, no contexto atual. Melhor que um empresário ou uma empresária, como Luiza Trajano. No passado, Lula fez este movimento e sinalizou um governo de aliança entre trabalho e capital produtivo, mas agora a disputa é mais entre a antipolítica, representada pelo lavajatismo, fisiologismo e bolsonarismo, e a política.

História recente

O Brasil viveu uma fase conturbada na sua redemocratização. Tancredo Neves, eleito presidente pelo Congresso em 1985, morreu antes de assumir e deixou o governo para o vice, José Sarney. Depois, veio Collor, venceu a eleição em 1989 e sofreu impeachment em 1992. Só então o país entrou num período de certa estabilidade política que duraria 23 anos, até o impeachment de Dilma Rousseff.

Foram dois anos de “governo de união nacional” sob a liderança de Itamar Franco, 8 anos de governos do PSDB, com Fernando Henrique, e mais 13 de governos petistas, com Lula e Dilma.

Estes 23 anos foram de descontinuidade na continuidade. Os grupos que se sucederam no poder eram muito diferentes. Impossível considerar que as políticas privatistas do PSDB têm qualquer relação com o desenvolvimentismo petista, ou que as políticas sociais são as mesmas. Não são, as divergências são profundas, a visão de Estado de PT e PSDB chegam a ser antagônicas, em muitos pontos.

Mas, se há divergências, há também continuidades. Como existe, por exemplo, entre os socialistas e os liberais franceses ou entre o PP e o PSOE, da Espanha. Estes partidos, no mínimo, respeitam o jogo democrático. No Brasil, há outras marcas. PSDB e PT, cada um a seu modo, são implementadores da Constituição de 1988. Ambos os partidos levaram seus projetos políticos para o governo federal, negociando com o fisiologismo do Congresso e colocando os partidos do que hoje chamamos de centrão a reboque dos programas de governo que representavam.

PSDB contra PT

Bem, talvez seja exagero dizer hoje que o PSDB tem projeto. Os estragos feitos por Aécio Neves, depois de 2014, e por João Dória, a partir de 2017, desfiguraram o partido. O PSDB de 2021 é uma corruptela do que foi o PSDB, é um partido apequenado, aderente ao bolsonarismo, que não vota mais por princípios ideológicos. E a desfiliação de Alckmin é o gesto derradeiro de reconhecimento de que o PSDB não é mais o PSDB.

Alckmin é, sim, a imagem de tudo que o PT não é. O PT é católico progressista, da igreja dos pobres; Alckmin é católico conservador. O PT é o partido dos movimentos sociais; Alckmin botou a polícia em cima dos movimentos sociais. O PT defende o papel do Estado na economia; Alckmin produziu uma crise hídrica em São Paulo por falta de investimento público. Todos que apontam divergências com ele têm razão. Mas Alckmin é o ex-tucano que melhor representa aquele velho PSDB, de Covas, de Zé Richa, de Serra, de Montoro, de FHC. E com este PSDB é possível dialogar, mantendo a hegemonia na aliança, sem abrir mão de pontos programático centrais, como a questão do petróleo, da educação, da ciência e do protagonismo do Estado no desenvolvimento econômico.

PSDB com o PT

Bolsonaro venceu a eleição cavalgando o antipetismo, mas o bolsonarismo enxerga PSDB e PT como a mesma coisa. Mais de uma vez ele disse que seu projeto era desfazer tudo que PT e PSDB fizeram. Seu projeto, no fundo, é destruir a Constituição de 1988 e voltar ao arbítrio, onde o poder executivo mandava nos outros dois. Isso esta impregnado não só nas falas de Bolsonaro, mas na visão de mundo dos bolsonaristas. O líder deveria ter poder de fazer tudo, já que foi eleito, inclusive atropelar, refazer e, no limite, invalidar a Constituição. Por isso, o grande antagonista, quando exerce seu papel, é o STF.

Não dá pra se fiar na visão da ignorância bolsonarista, mas precisamos reconhecer que há continuidades de fato, como no Estado Novo, um período com fases muito distintas, divergências, mas também continuidades. De saída, podemos apontar três: respeito à constituição e ao regime democrático, defesa dos direitos humanos, incluindo direitos civis, e hegemonia de um projeto de nação, não de interesses fisiológicos do parlamento. Afinal, quem governa hoje é o Arthur Lira, e governa para si e para os seus.

A conjuntura nos levou a isso. É preciso sim uma frente ampla, para ganhar a eleição e para governar. Um eventual governo Lula/Alckmin será hegemonizado pela esquerda, mas estará em disputa. Sempre foi assim, qual a novidade? Hoje, resistimos ao horror que é Bolsonaro; no futuro, vamos ter que manter a mobilização, poque só Lula Lá não basta. Quem dirá o que será o próximo governo é menos o que Alckmin ou Lula fizeram e mais como a aliança está sendo construída, a própria eleição e as pressões sobre o governo a partir de 2023.

Se esta articulação política vencer, será maravilhoso ter governo de novo, não esta distopia, mas Lula não pode tudo sozinho. Vamos ter que manter a mobilização e muitas vezes divergir do líder. Lula me representa porque eu posso pressioná-lo, com chances de sucesso, não porque ele pensa tudo que penso e já posso ir pra casa.

Em 2023, ninguém vai poder ir pra casa. Desfazer a destruição Moro/Temer/Bolsonaro vai exigir corações, mentes e braços.